BANQUETE DA LIBERDADE – uma escrita para alimentar a luta

Por Bruna Crioula

Dia 13 de maio. Para muitos, o dia da abolição da escravatura no Brasil. Para nós, que herdamos na pele e na memória os resquícios dessa falsa liberdade, é um dia de denúncia, reflexão e, sobretudo, resistência. Não se trata apenas de relembrar o ado, mas de compreender como ele estrutura o presente e nos desafia a criar novos caminhos de existência e reconhecimento.

A liberdade prometida pela Lei Áurea nunca nos foi dada de fato. Os corpos negros “libertos” foram deixados sem teto, sem terra, sem trabalho, sem qualquer estrutura que os permitisse recomeçar. A abolição, ao não ser acompanhada de políticas públicas que garantissem o o à terra e à alimentação adequada, perpetuou a exclusão social e econômica da população negra. A ausência de reforma agrária e a concentração fundiária, estabelecida pela Lei de Terras de 1850, impediram que os ex-escravizados tivessem o à terra, essencial para sua subsistência e autonomia. Além disso, a violação do direito humano à alimentação adequada afetou desproporcionalmente a população negra historicamente, e ainda hoje, enfrenta os maiores índices de insegurança alimentar devido os impactos da colonização nos sistemas alimentares, no racismo alimentar articulado à marginalização socioeconômica – engrenagens do racismo estrutural funcionando na segurança e soberania alimentar dos povos negros urbanos e rurais no Brasil. 

Carolina Maria de Jesus, em seu diário “Quarto de Despejo”, já denunciava a fome cotidiana nas favelas de São Paulo, revelando como a exclusão racial se expressa de forma brutal na falta de comida e dignidade para famílias inteiras. A sua escrita é um registro da dor e da denúncia de um Brasil que insiste em negar o básico aos corpos negros. E ainda assim, recomeçamos. Em espiral. Sem romantização, apenas uma constatação dura: sempre recomeçamos em espiral. Como diria Nêgo Bispo, sendo a gira na gira da gira. 

Se preciso falar em liberdade, quero falar daquelas que cozinharam as minhas. As quituteiras negras são um dos alicerces desta história. Mulheres que, muito antes da da Lei Áurea, já cozinhavam nossas liberdades com suas próprias mãos, criando uma economia de resistência nas brechas do sistema escravocrata. Sem direito à terra, à cidadania ou mesmo ao próprio corpo, foram elas que, cozinhando, vendendo nas ruas, nos mercados, nas portas de igrejas, levantaram o dinheiro para comprar alforrias e garantir a sobrevivência de suas comunidades. Foram as primeiras financiadoras da emancipação negra, atuando como abolicionistas de fato quando o Estado ainda era cúmplice da escravidão.

13 de maio também nos provoca a refletir sobre o espaço da mulher negra nos campos de alimentação, hospitalidade e gastronomia. Isso porque hoje também é considerado o dia do chef de cozinha, vulgo cozinheiro. E como falar de cozinha no Brasil sem reconhecer a presença negra em cada receita? Como não poderia ser diferente, o racismo alimentar opera para apagar nomes importantes como Benê Ricardo. A primeira mulher formada em gastronomia no país, é uma mulher negra e talvez seja por isso que você nunca ouviu falar dela. 

Reviver Benê é símbolo da luta contra o apagamento. Ela abriu portas em um espaço onde antes só se entrava pela porta dos fundos — não como chef, mas como mão de obra invisível. Sua trajetória honra a de tantas outras mulheres negras que, mesmo sem diploma, sabiam da alquimia dos temperos e das histórias guardadas nos caldos e farofas. Essas confuências me inspiram a viver as estratégias de sobrevivência, enfrentando o epistemicídio negro da culinária brasileira. 

Romper com o ciclo de invisibilização sistemática dos saberes atrelados aos sabores afro-brasileiros. Nossas receitas são apropriadas, embranquecidas, elitizadas. Os nomes mudam, os ingredientes se tornam exóticos, mas a história por trás dos pratos é arrancada, como se a cozinha não fosse também um espaço de escrita. Uma escrita feita com fogo, tempo e ancestralidade.

Sem encerrar essa gira, mas abrindo convite para diálogos em torno de um fogão à lenha que deixo a indicação para a leitura da moção antirracista do Slow Food Brasil que se coloca como um instrumento tão importante neste contexto. Ao reconhecer o protagonismo dos povos africanos na formação da cultura alimentar brasileira, a organização dá um o importante rumo à justiça histórica que precisa ser ingrediente principal nas nossas discussões e proposições para sistemas alimentares mais justos e inclusivos.

Não é só sobre comida — é sobre quem tem o direito de contar a história da comida. E, portanto, de contar a sua própria história. Inspirada nas escrevivências de Conceição Evaristo, escrevo estas palavras como quem tempera uma a no fim da tarde: com cuidado, memória e afeto.

Como mulher negra, trago no corpo as marcas de quem ainda luta por liberdade — agora não mais pela alforria, mas pela reparação, pela dignidade, pelo direito de ser autora da própria narrativa. A liberdade real começa quando reconhecemos as mãos que alimentaram o país. Quando valorizamos a sabedoria das cozinhas de terreiro, das barracas de feira, dos quintais. Quando rompemos com a lógica que nos exalta em feriados e nos apaga nos salões da elite.

E às minhas irmãs de fogão, de quintal, de marmita e de mercado, deixo aqui um chamado: juntem-se ao movimento Slow Food. Vamos ocupar este espaço com a força das nossas as e das nossas memórias. Que nossas práticas alimentares não sejam só sobrevivência, mas rebeldia e reivindicação de lugar. É tempo de fazer da cozinha um território político, onde o tempero carrega a história e cada refeição possa ser também um manifesto. Venham, porque juntas, somos revolução e precisamos cozinhar as liberdades de quem ainda está por vir. 

Neste 13 de maio, não aceito comemoração. Aceito reparação. E sigo escrevendo — com palavras, as e histórias — para que nossas meninas saibam que sempre estivemos aqui. Cozinhando, resistindo, existindo.


Bruna Crioula é nutricionista ecológica, pesquisadora alimentar e coletora urbana, é mestra em Ciências Sociais e faz parte da Rede Slow Food Brasil desde 2018. Bruna faz parte da Comunidade Slow Food Cerrado, da Aliança dos Cozinheiros e da Comunidade (em construção) pelos direitos agroalimentares de povos negros Caracois Azeviche. É matrigestora da Crioula Curadoria Alimentar – ecossistema criativo para o desenvolvimento de soluções ecológicas e ancestrais para sistemas alimentares.

Para mais conteúdo e:

Moção Antirracista  Slow Food Brasil

Lives Caracois Azeviche

REFERÊNCIAS CONSULTADAS PARA ESCRITA

BRASIL DE FATO. Reforma agrária é reparação histórica, diz sem-terra, aos 135 anos da abolição da escravidão. 13 maio 2023. Disponível em: https://www.brasilslowfoodbrasil-br.informativomineiro.com.br/2023/05/13/reforma-agraria-e-reparacao-historica-diz-sem-terra-aos-135-anos-da-abolicao-da-escravidao. o em: 13 maio 2025.

CONSEA. População Negra e Insegurança Alimentar. Brasília: Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, 2011. Disponível em: https://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/artigos/2011/populacao-negra-e-inseguranca-alimentar. o em: 13 maio 2025.

JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 3. ed. São Paulo: Ática, 2014.

GRAHAM, Richard. Alimentar a cidade: das vendedoras de rua à reforma liberal (Salvador, 1780–1860). Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

ALVES. Lourence. [RESENHA] Resenha do livro Alimentar a cidade: das vendedoras de rua à reforma liberal (Salvador, 1780–1860). Disponível em: https://drive.google.com/file/d/196Z9R_rdBOaA29qbz8P_ayEWJypj0LH-/view. o em: 13 maio 2025.

MST. Mais um 13 de maio e a luta por reparação histórica segue. 13 maio 2025. Disponível em: https://slowfoodbrasil-br.informativomineiro.com/2025/05/13/mais-um-13-de-maio-e-a-luta-por-reparacao-historica-segue/. o em: 13 maio 2025.

OLIVEIRA, Bruna Pedroso Thomaz de. Nossos pratos vêm de longe: a alimentação brasileira numa afroperspectiva. Blog da Editora Intrínseca, 11 nov. 2021. Disponível em: https://intrinseca.com.br/blog/2021/11/nossos-pratos-vem-de-longe-a-alimentacao-brasileira-numa-afroperspectiva/. o em: 13 maio 2025.

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